É perturbador quando, ao amanhecer, você espera construir um futuro mais democrático, no entanto, se depara com resquícios tão presentes de um passado teocêntrico e intolerante socialmente... Talvez soe em tom exagerado, mas um certo abalo no imobilismo social é preciso quando decisões governamentais se encontram novamente à mercê de parâmetros e dogmas religiosos, principalmente quando se está em um Estado, há décadas, declaradamente laico.
Nos últimos dias, chama a atenção o quanto pode incomodar aos “bons preceitos” da sociedade ocidental a socialização e busca contra a estigmatização, desde cedo, de comportamentos não enquadrados dentro do “normal” social. Aqui entra no centro do debate a permissão ou não a nível presidencial da distribuição de material educativo contra homofobia em escolas, que ficou conhecido como “kit anti-homofobia”.
Nesta semana a presidente Dilma Rousseff, declarou a suspensão dos “kits anti-homofobias” por considerar o material inadequado e não achar prudente editar esse material. À primeira vista, principalmente dos conservadores, pode parecer uma decisão cautelosa, entretanto, inquieta a sua suspensão mesmo depois de tal material ter uma avaliação positiva por instituições específicas de educação. Soa mais estranho ainda saber que a presente decisão foi tomada pouco depois de reunião de bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Ora...Em que se fundamenta o posicionamento presidencial? Parece mais uma vez entrar em cena uma velha discussão: pesa mais o conhecimento crítico-intelectual ou o conhecimento valorativo?
De um lado, encontra-se o MEC (Ministério da Educação), a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o movimento LGBT e demais movimentos sociais e conselhos profissionais que são favoráveis ao conteúdo do “kit” e de sua livre distribuição. Do outro, representatividades políticas e entidades religiosas cujos preceitos e doutrina consideram certas práticas sociais ofensivas aos bons costumes.
A UNESCO entende que sua publicização “contribuirá para a redução do estigma e da discriminação, bem como para promover uma escola mais equânime e de qualidade”¹. Já deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), considera que tal material estimula “a homossexualidade, a promiscuidade e [é] uma porta à pedofilia”¹ e conta com apoio dos pais de alunos, que não permitirão a exibição do material: “Eu já tenho apoio de pais e diretores que me procuram preocupados e vão acionar o corpo docente”¹.
A prudência presidencial em discutir questões que interfiram em valores incomoda, mas até onde tais valores interferem no valor e liberdade de “se ser” inquieta mais ainda. A fala do deputado sobre posicionamento dos pais apresenta mais motivos para incentivar a socialização de material anti-discriminatório do que coibi-lo. Não é a maior publicização das diferenças que ocasiona a diversidade social que somos, na verdade, seja que diferença for, ela sempre existiu, mas, ela se encontra há tempos invisibilizada pela sociedade, que prefere ocultá-las à trazer aos holofotes sua existência. Talvez pensem que sua não discussão evite o rompimento com padrões e o ideal normatizador do comportamento humano, mas, se por um segundo que fosse, ampliassem um pouco mais sua visão tão unilateral, irão ver que já se trata de uma sociedade pluricultural, cujas diferenças são ressaltadas e formas de coibir o maior conhecimento sobre o diferente não vai ajudar em sua diminuição, mas na produção e reprodução de estigmas e olhares preconceituosos para o que chama a diferenciação.
Pensemos... E se no Brasil permeasse ainda um forte posicionamento cultural e institucional favorável ao racismo, iria se apoiar e ir contra a distribuição e socialização de materiais anti-racista porque fere os valores enraizados na sociedade? E os valores enquanto cidadão e a liberdade de ser das pessoas envolvidas como ficam? Não significa que queremos tirar a importância e valor das culturas e costumes, mas pensemos no que é mais prioritário à uma nação: doutrinas clássicas ou a dignidade humana? Assim como se deve respeitar os diversos posicionamentos culturais e costumes, que também se lute pela tolerância do ser social, respeitando-o em sua individualidade.
Como bem traz o texto constitucional logo em seu início, “deve ser promovido o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”² e que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”³. Então, não deixemos que questões religiosas voltem a interferir em decisões governamentais e no direito à informação e construção de uma sociedade livre e mais justa.
A intolerância à diversidade social representa um retrocesso à consideração dos direitos humanos e à dignidade humana. De nada adianta um aparato legal pautado pela cidadania e em defesa de uma sociedade livre e igualitária se os representantes oficiais não estão imbuídos intrinsecamente de seus preceitos para possibilitar a sua real efetivação. Não se deve tomar decisões coletivas subsidiada por apreensões particulares, afunilar a visão e inundar as decisões governamentais por pré-conceitos que vão de encontro à tolerância e direito de ser do outro. A proibição valorativa de material educativo sobre formas distintas de identidade de gênero representa uma derrota ao movimento LGBT, mas mais ainda à construção de uma sociedade que pense no futuro livre das amarras de um passado conservador e estigmatizador.
Suzianne Santos
² Artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal Brasileira
³ Artigo 5º, inciso VIII da Constituição Federal Brasileira